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domingo, 20 de fevereiro de 2022

Como o FBI usa árvores genealógicas para prender criminosos

 Um assassinato que o FBI investigava havia 30 anos foi resolvido em duas horas. O segredo: montar a árvore genealógica do criminoso usando o DNA de primos que ele nem conhecia.



Sacramento, capital da califórnia. Entre 1976 e 1979, os moradores dessa cidade se
sentiam dentro de um filme de terror. Agindo sozinho, um criminoso invadia casas
(geralmente, de mulheres) durante a noite. Violentava e roubava as moradoras. Quando
havia um casal, para garantir que o marido não reagiria, ele deixava o homem de
bruços na cama e amarrava uma pilha de pratos às suas costas. Então ameaçava: a
qualquer barulho de louça, mataria os dois. Na imprensa, o bandido ficou conhecido
como o Estuprador da Área Leste.
Logo no início dos anos 1980, o sul do estado viveu outro pesadelo: um facínora
apelidado de Perseguidor Noturno matou pelo menos nove pessoas em um período de
dois anos. Assim como o Estuprador da Área Leste, ele estudava as casas antes de
invadi-las e quase não deixava pistas.
Hoje sabemos que os dois eram a mesma pessoa: Joseph DeAngelo, que aí acabaria
ganhando um outro apelido, Golden State Killer (o Assassino da Califórnia – “Estado
Dourado” é a alcunha da região). Seu último crime foi cometido em 1986.
Coincidentemente, o ano em que o primeiro caso policial foi resolvido usando amostras
de DNA, no Reino Unido. E esse poderia ser o caminho: DeAngelo usava luvas para
não deixar digitais na cena do crime, porém não tomava tanto cuidado com seu
esperma, que foi bem preservado em laboratório.
Mas a polícia só identificou o assassino em 2018, após mais de 40 anos de
investigação. Ele era ex-policial e sabia como acobertar pistas. Seu DNA não batia
com nenhum dos perfis armazenados na base de dados genéticos de criminosos dos
Estados Unidos. O FBI, então, recorreu à genealogista Barbara Rae-Venter.
Ela já usava genética e genealogia para encontrar os pais biológicos de pessoas
adotadas, mas resolver crimes era algo novo. Rae-Venter usou a mesma metodologia
com a qual estava acostumada: fez o upload dos dados genéticos do Golden State Killer
em uma plataforma aberta chamada GEDmatch, que compara trechos de DNA de
diferentes pessoas.
Esse tipo de plataforma existe por causa dos testes de ancestralidade. É o serviço
prestado por empresas como a AncestryDNA, a 23andMe, e a brasileira meuDNA.
Pessoas comuns mandam amostras de saliva com seu material genético, e então essas
companhias comparam o DNA delas com a de outros clientes que fizeram a mesma
coisa. E voilà: você pode descobrir que a maior parte dos seus genes veio do sul da
África; e eventualmente se há um neto bastardo do seu bisavô vivendo no Canadá.
Cada empresa tem seu banco de dados privado. Já o GEDmatch é uma espécie de
“metasserviço”: clientes que fizeram seus testes pela 23andMe, por exemplo, podem
baixar seus dados (em Excel) e fazer o upload lá. Outra pessoa, que testou pela
AncestryDNA, faz a mesma coisa. O GEDmatch cruza esses dados e, eventualmente,
ambas podem descobrir que são primas em terceiro grau (ou seja: que têm um tataravô
em comum).
O que ninguém espera, porém, é que o familiar desconhecido seja um criminoso. Rae-
Venter fez o upload do DNA do Golden State Killer no GEDmatch para ver se
encontrava parentes do assassino. E achou mesmo: algumas pessoas ali tinham
semelhança genética o bastante para serem primos de terceiro ou quarto grau do
sujeito.
Depois, reconstruiu 25 árvores genealógicas desses parentes usando dados públicos
(obituários, registros de casamento, certidões de nascimento etc.), até achar o nome do
ancestral comum mais próximo entre todos eles.
Só alguns dos descendentes desse ancestral comum tinham criado seus filhos na
Califórnia, o que a levou a uma lista de nove suspeitos. Um dos alelos conhecidos no
DNA do Golden State Killer indicava que ele tinha olhos azuis. E só um dos suspeitos
mostrava esse fenótipo: um californiano chamado Joseph DeAngelo.
Pela sequência de crimes hediondos – juntando as atrocidades em regiões diferentes, a
soma chegava a 13 assassinatos e 50 estupros conhecidos –, a prisão de DeAngelo foi o
primeiro caso de grande repercussão nos Estados Unidos resolvido por meio da
genealogia investigativa. Dali em diante, mais de 300 casos já foram solucionados
dessa forma nos EUA – algo que só foi possível graças ao crescimento dos testes de
ancestralidade.
Decodificando o DNA
“Teste de DNA” é um conceito genérico. Você pode fazer um para descobrir quem é o
seu pai ou para pesquisar fatores ligados a uma doença autoimune. Dependendo da
finalidade, as técnicas necessárias podem ser tão diferentes quanto um iPhone e um
orelhão.
Vale uma revisão do que é o DNA. As células do seu corpo guardam um manual de
instruções que ensina a fazer você: a quantidade de dedos em cada mão, a cor do
cabelo, quais enzimas digerem o seu almoço. Esse manual vem escrito inteirinho com
apenas quatro letras: A, C, T e G. Você leria algo como AATGTGCC… repetido 6
bilhões de vezes. O seu livro de receitas é do tamanho de mil bíblias.
Essas letras, na verdade, são as bases nitrogenadas adenina, citosina, timina e guanina.
E elas estão organizadas em longas fitas de DNA compactadas no núcleo das células.
Essas fitas se dividem em 46 emaranhados: os cromossomos. Você recebe 23 da sua
mãe e 23 do seu pai.
Os manuais de instruções de todos os seres humanos são praticamente idênticos. Você
compartilha 99,9% do DNA com qualquer outra pessoa. O 0,1% que sobra ainda é
bastante: uma bíblia inteira de diferença.
Os STRs (abreviação de Short Tandem Repeats) são trechos específicos em que um
conjunto de letras se repete. Mesmo antes de os cientistas mapearem o DNA completo
de um ser humano (o que só aconteceu em 2003 com o Projeto Genoma Humano), eles
já sabiam onde encontrar alguns desses pedaços. O interessante é que os trechos variam
bastante de uma pessoa para outra: baseando-se em um conjunto de ao menos 20 STRs,
as chances de dois indivíduos não relacionados terem o mesmo perfil é de uma em um
quatrilhão – ou menos.
Dá para comparar duas amostras de DNA olhando para esses 20 STRs, sem precisar
sequenciar os bilhões de bases nitrogenadas. É assim que funcionam os testes de
paternidade. E esse também é o teste mais usado na resolução de crimes via amostras
de DNA. Os investigadores do Golden State Killer compararam os perfis de STR do
Estuprador da Área Leste e do Perseguidor Noturno para confirmar que se tratavam da
mesma pessoa – só não sabiam quem.
A análise de STR resolve a maioria, mas não todos os casos. Um assassino que deixa
seu DNA na cena do crime só será pego caso ele tenha sido preso antes: coleta-se DNA
de alguns criminosos para averiguar eventuais reincidências.
Nos EUA, esse trabalho começou em 1990, com a montagem de uma base de dados
genéticos hoje chamada Sistema Combinado de Índices de DNA (CODIS, na
abreviação em inglês). Hoje, ela possui dados genéticos de 19 milhões de pessoas.
(Também temos um banco de dados brasileiro de STRs, mas com apenas 127 mil
perfis.)
Mas se aquele tiver sido o seu primeiro crime, o assassino está livre. Ou melhor: estava
– porque as coisas mudaram de alguns anos para cá. O DNA de Joseph DeAngelo não
estava no CODIS. Ele foi preso graças a um outro tipo de variante genética: os
polimorfismos de nucleotídeos únicos (SNPs). Enquanto os STRs são trechos inteiros
repetidos de DNA, os SNPs são letras únicas que variam de uma pessoa para outra.
Você pode ter um “A” na quinta linha da 20ª página do seu manual de instruções,
enquanto outra pessoa tem um “G” no mesmo local. Os cientistas já têm uma ideia de
onde essas diferenças costumam aparecer entre humanos aleatórios, e aí podem olhar
apenas para as eventuais semelhanças nesses pontos do DNA para buscar parentes – ou
seja, pessoas que também tenham uma letra A na quinta linha da 20ª página. As
empresas que fazem testes de ancestralidade analisam 700 mil SNPs.
O método não diz só quem é seu parente, mas também qual é o provável grau de
parentesco. Pensa só: se metade do seu DNA veio de cada um dos seus pais, então
metade dos seus SNPs também. Você compartilha em média 50% dos SNPs com seus
irmãos, 25% com seus tios e sobrinhos, e 12,5% com seu tio-avô e primos de primeiro
grau.
Em outras palavras: por mais que o DNA dos criminosos não estivesse na base de
dados do governo, pelo menos parte dele estaria disponível no GEDmatch – via DNA
de possíveis parentes que fizeram seus uploads lá.
Match genético
Mas quais são as chances de um primo distante de um assassino ter feito um teste
desses, e ele acabar atrás das grades? Vejamos.
Fiz um teste de ancestralidade em dezembro de 2020 (para escrever esta matéria da
Super). Quando entrei na ferramenta de busca de parentes, encontrei uma mulher que
compartilha 1,28% dos SNPs comigo. É muito: trata-se de uma provável prima de
segundo grau. Para efeito de comparação, o maior “match” do Golden State Killer
compartilhava apenas 0,81%. Definitivamente não seria difícil me encontrar.
Os detetives genealógicos normalmente precisam de dois matches representativos para
chegar ao suspeito – método chamado “triangulação de DNA”. Quando o investigador
encontra bons registros familiares, a busca pelo criminoso pode ser questão de poucas
horas.
Foi o que aconteceu no caso de William Talbott II*, que matou um casal em 1987. Os
jovens faziam uma viagem de van do Canadá aos EUA quando os corpos foram
encontrados na estrada. No veículo, os policiais encontraram luvas de plástico usadas
pelo assassino, o que permitiu a extração do DNA. Mas não havia uma amostra do
DNA de Talbott nos registros policiais.
A polícia passou 30 anos investigando o caso, e nada de aparecer algum DNA que
batesse. Em 2018, tudo mudou de figura. Entraram em contato com Cece Moore, uma
referência em genealogia genética. E ela identificou o assassino em duas horas. De um
sábado.
O processo foi semelhante ao do Golden State Killer. Primeiro, a amostra foi submetida
à análise de SNPs. Depois, subiram os dados no GEDmatch, e aí surgiram duas pessoas
com segmentos de DNA interessantes: uma com 3,12% de SNPs em comum e outra
com 4,06%. Moore reconstruiu a árvore genealógica de cada um separadamente,
fazendo buscas nos bancos de dados de cartórios e analisando certidões de nascimento,
casamento e passaportes para ver quem era pai de quem.
E olha só: as duas “testemunhas genéticas” em questão eram parentes do assassino,
mas não entre si. O objetivo, então, era encontrar algum casamento que unisse as duas
famílias. Um dos descendentes dessa união seria o criminoso. E só havia um: William
Talbott II.
DNA de quem?
Vai ficar cada vez mais fácil encontrar pedaços de você na internet. Uma pesquisa de
2018 estima que, com os dados genéticos de apenas 2% da população, é possível
descobrir primos de segundo grau em 99% dos casos (pelo simples fato de que cada ser
humano tem muitos parentes). Até 2021, 38 milhões de americanos já haviam feito
testes de ancestralidade.
Não há perspectiva para a chegada da genealogia forense no Brasil. Em parte porque os
testes de ancestralidade ainda estão começando a se popularizar por aqui. Ricardo di
Lazzaro Filho, CEO da Genera, uma das empresas que oferecem o serviço, afirma que
cerca de 100 mil brasileiros já fizeram o teste – um número baixo se comparado ao dos
EUA, mas que tende a crescer: a própria Genera viu a procura aumentar 15 vezes em
2020 em comparação ao ano anterior.
A questão, de qualquer forma, é polêmica. Em 2019, a GEDmatch foi comprada por
uma companhia de genética forense, a Verogen. E isso tira um pouco do caráter
“comunitário” da iniciativa: ao fazer seu upload lá, afinal, você pode até ajudar na
solução de crimes, mas também ajuda (mais) uma companhia a fazer dinheiro a partir
dos seus dados – nesse caso, o mais íntimo desses dados, seu DNA.
Por outro lado, esse tipo de questão pode se tornar irrelevante nos próximos anos.
Talvez um dia seu DNA funcione como sua impressão digital – o Estado mantenha o
registro dele em seus bancos de dados e pronto. O que importa é outro ponto: a
tecnologia já existe, e já ajuda na solução de crimes. Cabe à sociedade decidir qual é a
melhor forma de utilizá-la.

*Talbott II foi condenado em 2019, mas alegou viés por parte do júri. Em dezembro de
2021, a sentença foi revista e uma nova audiência deve ser marcada. Os advogados não questionaram as evidências genéticas ou método usado na investigação genealógica.


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